Ave Rara


Ao longo do próximo mês e meio, a PrivacyLx publica bissemanalmente a primeira edição de um blog intitulado “Descendo a toca do coelho”, com o objetivo de sensibilizar a sociedade civil para os perigos de viver numa sociedade sobre permanente vigilância, e mobilizar os portugueses na adoção de soluções que visem dirimir os olhares, que afetam o nosso comportamento e condicionam as nossas opções.


PARTE I - O problema

Capítulo 1 - Ave rara

«Sinto uma profunda dívida pelas pessoas que derramaram o seu sangue, suor e lágrimas para que possamos disfrutar da Carta dos Direitos Humanos. Não a tenham por garantida. Todas as gerações têm o direito de a proteger.» (1)

Começo por citar uma frase que resume em poucas palavras, mas com grande exatidão, a importância que têm os valores por que me rejo e que definiram o meu carácter, ao longo de um percurso que me levou a dedicar tempo a determinadas causas como: a liberdade económica, as liberdades individuais e digitais, e a liberdade religiosa.

A História da Humanidade, entre outras coisas, é a História do exercício do poder do Homem sobre o seu semelhante, na tentativa de o controlar. A procura da verdade é a reação e o ato de Liberdade. Há muito que suspeito da existência de um Big Brother e não se trata de uma ilusão, mas de um raciocínio lógico, ou seja, é teoricamente possível, financeiramente desejável e de baixo risco.

Recordo de me pedirem, variadas vezes, o contacto de WhatsApp e de responder que não tinha um “smart” phone, e por este motivo, de me perguntaram qual a motivação para não ter um. Faziam-me sentir uma ave rara! Mas eu tenho os meus motivos… e não demorou muito até que as minhas suspeitas se confirmassem, quando em 2013 vieram a público as revelações de Edward Snowden sobre a atividade de espionagem massiva (2) levada a cabo pelo governo do EUA. Ficámos a saber que a Liberdade está sob ataque, e a PRIVACIDADE é a sua primeira vítima.

Este foi também um ano de viragem no plano pessoal. Se antigamente viam-me como um sujeito à semelhança de quem acredita em abduções por alienígenas ou outras teorias conspiratórias, ou de quem aparentava ter algo a esconder e preocupado de estar a ser monitorizado - em particular, desvanecia-se após minutos de argumentação, suportada pela validade dos factos; ainda que de todo um empreendimento de persuasão não surtisse efeitos práticos. Contudo, é esta resistência que me surpreende nos outros, pois apesar do peso das notícias explosivas que vieram a público - era como se nada fosse!

Como disse o gato Cheshire (a Alice no País das Maravilhas): “Eu não sou estanho, esquisito, alienado, doido. A minha realidade é diferente da tua”. É esta a minha realidade, que me leva a colocar questões (3) que parecem não preocupar minimamente aqueles que me rodeiam. Questões essas como: «Porque não têm os telemóveis ou as “smart” TVs interruptores físicos de ligar e desligar (ON/OFF)»? E não me refiro aos que interrompem o circuito elétrico para poupança de energia, mas aos que desligam as comunicações com o exterior: o microfone, a câmara, o Wi-Fi. E se é nas perguntas que procuro acalmar as minhas inquietações, é nas respostas que obtenho a certeza que não se trata de um problema de sanidade mental. Simplesmente estamos a ir na direção errada.

Foi no final no último trimestre de 2018 que atingi o ponto de saturação - não dava mais como negar a realidade dos factos. Seguia o rebanho, ou mantinha-me afastado, qual ovelha negra? Apesar de se suceder ao escândalo que envolveu a Cambridge Analytica (4), aquela data não foi um marco, mas o culminar de todo um processo. No ano seguinte investi na pesquisa e leitura e, sem perder de vista uma frase que me serviu de bússola: «Existe um compromisso de troca entre privacidade e conveniência». (5)

Com os conhecimentos recém-adquiridos, optei por um telemóvel que me desse a liberdade de instalar um qualquer sistema operativo e aplicações, por forma a não ficar amarrado às condições monopolistas e abusivas impostas pelos dois únicos fabricantes de referência no mercado. Escusado será dizer que continuo sem WhatsApp, felizmente (6). Por fim, encontrei com quem partilhar os meus interesses e preocupações, e atualmente colaboro numa organização na defesa da privacidade. Isto porque acredito que o problema só se resolve com uma sociedade civil forte (7).

Assim, sinto o dever de partilhar os conhecimentos adquiridos, em gesto de retribuição e agradecimento. Mas existe tanta informação de qualidade que, antecipadamente, coloquei a questão: - que valor acrescento? O que escrevo não se trata de um trabalho académico ou de uma tese de Doutoramento. Não se trata de uma investigação científica ou de uma cobertura jornalística. Em vez, optei por criar um guia de referências baseado num conjunto de recomendações, estruturado por capítulos. Abordando diferentes temas, de forma a sensibilizar o leitor, procuro orientar na adoção de boas práticas e uso correto de ferramentas. Também optei por privilegiar a língua portuguesa (de Portugal) e traduzir o jargão, ainda que as referências de rodapé sejam em inglês, na sua maioria. Por este motivo, apesar de algumas notas de rodapé servirem apenas para citar a fonte, e outras são recomendadas para melhor compreensão dos assuntos abordados. O objetivo é conseguir chegar ao maior número de pessoas interessadas sem conhecimentos técnicos, mas com o mínimo de à vontade no manuseamento de um computador, como também orientar para uma leitura mais aprofundada para os mais interessados e com conhecimentos em inglês.

Desejo assim contribuir de alguma forma com a partilha de informação na esperança de obter (feedback) em troca correções, comentários e sugestões de melhoria para o endereço em rodapé (8).

Remato com uma frase que dá o nome a este guia e que vos é a todos familiar, decerto: «Depois disto, não há volta a dar. Toma a pílula azul - a história acaba, e acorda na sua cama a acreditar no que quiser. Toma o comprimido vermelho - fica no País das Maravilhas, e eu mostro-lhe o quão fundo a toca do coelho vai. Lembra-te: tudo o que estou a oferecer é a verdade. Nada mais. » (9) :)

1 - Source (unknown): «I feel a profound debt to the peoples that spilled their blood, sweet and tears so we can enjoy the Human Rights charter. Don’t take it for granted. Every generation have the duty to protect.»

2 - About:

3 - Example:

4 - About: https://en.wikipedia.org/wiki/Cambridge_Analytica

5 - Source (Techlore): https://invidio.us/watch?v=r4hTuxcuSj8

6 - About (EFF): https://www.eff.org/deeplinks/2016/10/where-whatsapp-went-wrong-effs-four-biggest-security-concerns

7 - Bruce Schneier on the matter: «The way we protect ourselves (…) is through laws. This is how we’re also going to protect our privacy. » Source: https://www.schneier.com/blog/archives/2013/06/trading_privacy_1.html

8 - tgnvs[at]privacylx[dot]com, Fingerprint: 28E1 461E 46F5 89E5 235E DF21 C92B 12E7 B3EC 8FAA

9 - Source (Matrix movie): «After this, there is no turning back. You take the blue pill the story ends, you wake up in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill you stay in Wonderland, and I show you how deep the rabbit hole goes. Remember: all I’m offering is the truth. Nothing more. »