Ao longo do próximo mês e meio, a PrivacyLx publica bissemanalmente a primeira edição de um blog intitulado “Descendo a toca do coelho”, com o objetivo de sensibilizar a sociedade civil para os perigos de viver numa sociedade sobre permanente vigilância, e mobilizar os portugueses na adoção de soluções que visem dirimir os olhares, que afetam o nosso comportamento e condicionam as nossas opções.
PARTE II - O diagnóstico
Capítulo 4 - Nada a esconder
Os atuais computadores «não têm funcionalidades adicionais. Não são mais rápidos ou mais otimizados. Não aparentam serem diferentes. Apenas… incham? O novo hardware é mais rápido, então programam o software para ser lento. Este reinicia. E no fim, não temos escolha. O Windows 10 leva 30 minutos a atualizar. O que estará a fazer todo esse tempo? (…) As aplicações-web poderiam abrir 10 vezes mais depressa, se bloqueássemos todos os anúncios» (1). A esta observação, o autor designa este fenómeno o que na língua de Camões pode ser traduzido de “desencanto do software”.
A progressiva perda de privacidade proporciona uma «cultura de conformidade e de aversão ao risco», contribuindo para o «aumento da rigidez social», à medida que os «seus dados são transformados em milhares de diferentes pontuações» (2). As «pessoas começam a constatar que esta ‘disrupção digital’ pode limitar as suas oportunidades», e assim, «começam a alterar o seu comportamento para obter melhores pontuações» (3). A este outro fenómeno designamos por arrefecimento social, que condiciona o comportamento individual através um sistema de incentivos viciado, onde a título de exemplo médicos são penalizados por atender pacientes diagnosticados com cancro em estado de desenvolvimento avançado, e ativistas pelo ambiente vêem agravado o seu seguro automóvel apenas por advogarem medidas contrárias ao programa do governo.
Há um fenómeno económico conhecido por “efeitos de rede”: quanto mais utilizadores uma plataforma tem, mais valiosa se torna, tanto para os próprio utilizadores como para a sua rede de contactos. As plataformas online - e o modelo de negócio por detrás das mesmas - são, pela sua própria natureza, propensas a estes efeitos de rede. Muitos utilizadores aderem ao Facebook porque os seus amigos estão aí e aí se encontram; os anunciantes vão ao YouTube porque é neste que a audiência é maior. Tudo isto tem um efeito de bola de neve, de tal forma que quanto maior for uma rede ou plataforma, mais dependentes os utilizadores se tornam da mesma, e mais entrincheiradas ficam - tornando mais difícil abandonarem a plataforma ou para os concorrentes estabelecerem uma alternativa». (4) Esta perda gradual de liberdade alimenta-se e é alimentada por um ecossistema de opções limitado, aumentado a dependência ou a segregação.
A acompanhar este fenómeno está também o vendor lock-in. A diferença em relação ao anterior reside sobretudo na intenção propositada, ou seja, na estratégia empresarial adotada de forma a dificultar a adoção de soluções concorrentes.
Ao invés, existe o vendor lock-out, ou seja, o facto de “colocar todos os ovos na mesma cesta” pode deixar o consumidor impossibilitado de aceder a toda a sua vida digital, seja por mero acaso (5), porque a empresa deixou de dar suporte a determinada linha de produto ou - simplesmente - porque a empresa que comercializa o produto declarou falência.
A dependência de que falei anteriormente é explorada diminuindo os ciclos de compra do consumidor, através de um outro fenómeno conhecido por obsolescência planeada. Esta «tende a funcionar melhor quando um produtor tem pelo menos um oligopólio» (6). Ora, se olharmos para o mercado dos fabricantes de software para telemóveis, depressa chegamos à conclusão que não estamos assim tão longe disso.
Num mercado global tão enviusado, nem as operadoras nacionais têm outra solução senão seguir com a corrente. Um bom exemplo ocorre precisamente em Portugal, onde um fornecedor de serviços de internet não respeita a neutralidade da rede (7), em complacência com os grandes decisores mundiais.
Poderia continuar com um rol de fenómenos sem fim, mas em suma, o uso impróprio da informação que nos diz respeito pode ser também ser usada para fins ilícitos, como assedio, obtenção de lucro indevido, fraude, chantagem, etc. Seja como for, limita a nossa capacidade moral de decidir e, em última análise, restringe a liberdade e sufoca a Democracia. Aliás, muito disto já aconteceu (8)!
É curioso como se ouve tantas vezes alguém dizer que nada tem a esconder. Poderia apontar várias razões (9), todavia quero tão somente (10) citar esta: «Argumentar que não se preocupa com o direito à privacidade porque não tem nada a esconder não é muito diferente de dizer que não se preocupa com a liberdade de expressão porque não tem nada a dizer» (11).
–
(1) - Source: https://tonsky.me/blog/disenchantment/
«There are no additional features. They are not faster or more optimized. They don’t look different. They just…grow?
New hardware is faster, so they made software slower.
They’ll reboot. After all, they have no choice.
Windows 10 takes 30 minutes to update. What could it possibly be doing for that long? »
«Web apps could open up to 10 times faster if you just simply blocked all ads. »
(2), (3) - About: https://www.socialcooling.com/
(4) - Source:
SURVEILLANCE GIANTS:
HOW THE BUSINESS MODEL OF GOOGLE AND FACEBOOK
THREATENS HUMAN RIGHTS Amnesty International
(5) - Example.: https://qz.com/1683460/what-happens-to-your-itunes-account-when-apple-says-youve-committed-fraud/
(6) - Source: https://en.wikipedia.org/wiki/Planned_obsolescence
(7) - «Portuguese Internet service provider MEO offers smartphone contracts with monthly data limits, and sells additional monthly packages for particular data services. Critics of the EU’s net neutrality rules say they are broken with loopholes that allow data for different services to be sold under zero rating exceptions to data limits. Consumer advocates of net neutrality have cited this pricing model as an illustration of Internet access with weak net neutrality protection. » ~ Source: https://en.wikipedia.org/wiki/Net_neutrality
(8) - About: https://digitalsovereignty.org/
(9) - About: https://digitalcourage.de/nothing-to-hide | Movie ‘Nothin to hide’: https://invidio.us/watch?v=M3mQu9YQesk
(10) - Also worth watching, this short video: Todd Weaver CEO Purism - The future of computing and why you should care: https://invidio.us/watch?v=aWV1WxIcp6U
(11) - Source: «Arguing that you don’t care about the right to privacy because you have nothing to hide is no different than saying you don’t care about free speech because you have nothing to say». ~Edward Snowden